Em entrevista à revista FH, o professor e pesquisador da USP
Mário Scheffer avalia a atuação da ANS,o crescimento do saúde
suplementar e os investimentos em campanhas políticas realizados
por empresas de planos privados
Para o professor do Departamento de Medicina Preventiva da
Faculdade de Medicina da USP, Mário César Scheffer, a Agência
Nacional de Saúde Suplementar (ANS) é permissiva em sua atuação na
regulação, mas, por outro lado, sem sua existência “seria terra de
ninguém”. Em entrevista à revista FH, o professor analisa o
segmento privado de saúde brasileiro e comenta os rumores sobre um
possível pacote de incentivos do governo.
FH: Qual é a real proposta deste pacote de financiamento da
saúde, que foi noticiado nos últimos meses pela imprensa?
Scheffer: Tem surgido na mídia e o que me parece e tem chegado a
mim é sobre o COFINS e outros tributos que desonerariam os negócios
dos planos em geral, inclusive, para os prestadores. Porque hoje se
tem um grande problema na saúde suplementar: o esgotamento, pois
eles venderam mais planos do que a capacidade instalada de entrega.
Existe nas intenções, entrevistas e nas declarações dos donos das
empresas dos planos de saúde a recente reconfiguração desse
mercado. Tem a novidade da entrada do capital estrangeiro no setor
com a compra da Amil pela UnitedHealth, a existência de grandes
administradoras e corretoras como a Qualicorp, essas são novidades
que tem se materializado na intenção de ampliar esse mercado.
Então, se tem oferecido ao governo essa possibilidade de ampliar
planos de saúde e falam até em duplicar para metade da população
coberta. Mas são os planos que já dominam uma parte grande do
mercado, que são, absolutamente, medíocres na cobertura, de
qualidade muito ruim, são planos de baixo custo, planos baratos.
Isso é a origem da crise da saúde suplementar, inclusive que a ANS
permitiu- acho importante falar da omissão do órgão regulador-,
porque ela vem agora tentar apagar incêndio e estipular medidas,
criando prazos para atendimento, consulta e exame, simulando uma
regulação. Na verdade, a agência permitiu a entrada de planos que
não tem capacidade. Hoje há planos de R$100, R$150, então alguma
coisa está errada. Há um crescimento artificial e perigoso desse
mercado e o governo pode se encantar com o potencial de oferecer
planos baratos- até por conta do subfinanciamento e das
dificuldades do SUS que também criou em grande parte da população o
desejo de ter plano de saúde, pois ela não encontra no SUS aquilo
que tem direito. Isso pode ‘casar’, o governo pode ter visto a
possibilidade de agradar essa parcela da população que, na verdade,
está sendo enganada. Estamos assistindo, mas de fato, não temos
elementos assim tão concretos, e à medida que isso vem à tona,
critico.
FH: Na sua avaliação, qual é a contribuição da ANS?
Scheffer: Desde a regulação em 1998, que dois anos depois criou
a ANS, as coisas melhoraram. Estamos falando de um mercado que
antes não tinha regulação alguma, portanto, as ações que a
existência da ANS permitiu não foram poucas. Minimamente, hoje, se
tem critérios para entrada e saída das empresas do setor, definição
mínima de cobertura e parâmetros importantes de regulação, antes,
esse mercado era totalmente desregulado, era ‘terra de ninguém’, um
caos. Muita coisa foi feita, mas o que me parece é que ela (a
agência) é ineficaz em vários aspectos, pois fiscaliza pouco e o
resultado de sua fiscalização e poder de política não se
materializa por diversos motivos e em vários aspectos da regulação
e por conta contaminação da ANS pelos interesses de mercado. Ela
não é rigorosa e não tem a extensão, acho que é muito permissiva
para a prática, porque esse é um mercado muito dinâmico- ele
enxerga muito claramente as brechas da regulação e vai avançando. E
neste ponto me parece que a ANS, a regulação e o papel dela são
incompletos.
FH: Você pode exemplificar?
Scheffer: Ela permite, por exemplo, a entrada de produtos que
está na “cara” que não vão oferecer o mínimo que se espera. Ela não
regulou os contratos coletivos adequadamente, hoje se tem uma
epidemia de planos que chamamos de falsos coletivos, a partir de
duas ou três vidas, basta ter um CNPJ. Esses contratos fogem da
regulação, esses coletivos com menos de 30 pessoas, por
exemplo,viraram uma epidemia. A ANS tenta correr atrás, mas em meu
ponto de vista já tomou lastro, algo que cresceu assustadoramente,
pois são contratos que vale o acordo entre as partes e tem se
revelado uma arapuca para esses vários planos coletivos. Esse é só
um exemplo, mas tem vários outros em que a ANS foi permitindo e
fazendo vistas grossas. A questão do ressarcimento ao SUS é um
escândalo, porque a lei previa isso e a ANS não consegue processar
e cobrar, então o SUS não vê a cor do dinheiro que lhe é devido por
conta das inúmeras exclusões de cobertura.
FH: Um estudo comandado por você e pela professora Lygia Bahia,
mostra que, em 2010, 48 operadoras deram R$ 11,8 milhões para
campanhas políticas. Fale mais sobre essa pesquisa?
Scheffer: Temos estudados a relação entre o público e o privado
na saúde. Uma das formas desta relação é o financiamento de
campanhas por empresas de plano de saúde. Fizemos em três
campanhas: 2002, 2006 e 2010 e no final de 2014 vamos tentar fazer
de novo. É um estudo, obviamente, parte de contribuições formais e
legais, ele pega a ponta do iceberg, porque infelizmente ainda o
financiamento privado de campanha no Brasil tem a característica de
ser o financiamento escondido, existe caixa dois, recursos não
contabilizados. Então, conseguimos fazer a partir de doações
formais e oficiais registradas no Tribunal Superior Eleitoral.
Identificamos desde a eleição de 2002, um crescimento importante no
financiamento de planos para campanhas.
FH: E qual a conclusão?
Scheffer: Chegamos à conclusão que existe um lobby importante
nesse segmento a ponto dele contar com uma bancada de
parlamentares. É um setor que está interessado em exercer
influência sobre os seus negócios e os rumos do sistema de saúde e
é um setor que tem esse poder. E quais são os interesses? São
inúmeros. Isso é absolutamente legítimo porque é um financiamento
legal, mas todos os setores privados que financiam campanhas têm
algum interesse em retribuições. Isso tem a ver com a aprovação de
lei que beneficiam e a não aprovação de leis que podem atrapalhar
os negócios. Toda essa dependência e intenção desse setor de se
beneficiar de recursos públicos, isso nos parece que é o que move
essa proximidade desse segmento com campanhas e candidaturas. Isso
está muito nítido.