Um novo estudo publicado no "British Medical Journal" – uma das
principais revistas médicas do mundo – retoma a ideia de que a
vacina contra a gripe A (H1N1) pode ter desencadeado narcolepsia,
um transtorno do sono, em crianças durante a pandemia de 2009 e
2010. No Brasil, há ao menos quatro casos suspeitos, mas a
associação com o produto não foi confirmada.
A narcolepsia é caracterizada por sono excessivo durante o dia,
quando a pessoa sente uma vontade de dormir irresistível, sem se
importar com o que está fazendo. O problema pode vir acompanhado de
cataplexia, uma fraqueza muscular que ocorre em momentos de emoção.
É um distúrbio raro, que atinge 0,08% da população e surge, em
geral, na adolescência ou em mulheres na pós-menopausa. A doença
não tem cura e é tratada com remédios, terapia comportamental e
higiene do sono (que ensina a pessoa a controlar os cochilos do
dia). No trabalho realizado na Inglaterra com 245 pessoas de 4
a 18 anos, os pesquisadores constataram que entre as crianças
vacinadas a incidência de narcolepsia foi 14 vezes maior.
O problema foi mais frequente em quem tomou a vacina Pandemrix,
fabricada pelo laboratório GlaxoSmithKline (GSK) e amplamente usada
em 2009 e 2010, durante a pandemia da gripe A (H1N1). Neste caso, a
incidência foi 16 vezes maior, segundo a
pesquisa. Levantamentos realizados na Suécia, Finlândia,
França e Irlanda mostraram que 800 jovens desenvolveram o problema
depois de tomar a vacina da GSK entre 2009 e 2010, o que levou a
Agência Europeia de Medicamentos a restringir desde 2011 o uso da
vacina em pessoas com menos de 20 anos.
Brasil
O Ministério da Saúde recebeu em 2010 duas notificações de casos
de narcolepsia, vindas de Minas Gerais, mas a associação com a
vacina nunca foi confirmada. O neurologista Fernando Morgadinho,
coordenador do Ambulatório de Sonolência Diurna Excessiva do
Instituto do Sono, vinculado à Unifesp (Universidade Federal de São
Paulo), sabe de outros dois. "Um ocorreu em Belo Horizonte e outro
no Nordeste, mas não temos comprovação. Imagino que haja mais
casos, mas o Brasil não fez busca ativa, fica difícil saber num
país tão grande", diz.
A vacina da GSK foi usada aqui em 2010, segundo o governo. A
partir de 2011, o Ministério da Saúde deixou de distribuir a vacina
dessa marca no país. A professora de inglês Joseli Reis, 42,
acredita que sua filha de seis anos tenha desenvolvido narcolepsia
depois de ter sido vacinada em 2010. Ela tinha quatro anos e
começou a manifestar os sintomas seis meses depois de receber a
vacina. "Ela só acordava para comer e ir ao banheiro – às vezes nem
isso, fazia xixi na cama. Ficamos atordoados com essa mudança de
comportamento", conta. O diagnóstico só foi feito seis meses mais
tarde, depois de a menina passar por diversos especialistas em
Campinas e São Paulo. "O neurologista que a acompanha diz que é
cedo para relacionar o problema com a vacina, que se deve esperar
mais estudos. Mas eu acho que tem relação", afirma.
Causa e efeito
Há diversas teorias sobre a causa da narcolepsia, mas a mais
aceita é a de que a doença seja autoimune e apareça quando o
próprio organismo ataca as células de uma região do cérebro chamada
de hipotálamo. É nessa região que se produz a hipocretina,
substância responsável por manter o estado de vigília. Na falta da
substância, fica muito difícil para a pessoa se manter
acordada. "Essa autoagressão ocorre em quem tem predisposição
genética e é exposto a algum agente que modifica o sistema imune e
o redireciona para "atacar" a região", explica Morgadinho.
É nesse ponto que o vírus H1N1 atua. Sabe-se que as cepas dos
vírus influenza têm predisposição para atacar o hipotálamo. "Não
importa se é o vírus vivo, parte dele ou o vírus morto", acrescenta
o neurologista. Após a grande pandemia de influenza das
décadas de 1920 e 1930, por exemplo, os casos de problemas
neurológicos relacionados à sonolência cresceram muito. "Todas
essas informações mostram que não é coincidência que a vacina
ataque essa região, seja por ação direta, seja por ação
imunológica", diz Morgadinho.
O neurologista norte-americano Emannuel Mignot publicou diversos
estudos sobre a relação do vírus H1N1 e a manifestação de
narcolepsia em crianças, é um dos maiores pesquisadores de
narcolepsia do mundo e professor da Universidade de Stanford (EUA).
Ao UOL, explicou que a vacina Pandemrix, da GSK, desencadeou mais
casos porque os adjuvantes (substâncias usadas no produto para
aumentar a resposta imunológica) atuam como catalizadores desse
mecanismo. "Por isso, a combinação do H1N1 com essas substâncias
fazem com que o sistema imune tenha uma resposta ainda mais
excessiva", disse.
Mas Mignot cogita, ainda, que o próprio vírus pode desencadear o
problema, a exemplo do que ocorreu na pandemia do século passado.
"Pensando dessa forma, a vacina poderia atuar até como protetora
contra a gripe A, que precipitaria a narcolepsia", diz. Ele
publicou um estudo em 2011, baseado em 900 casos de narcolepsia
diagnosticados em Pequim , na China, de 1988 a 2011. Durante a
pandemia da gripe A, o número de casos triplicou, mas apenas 6% das
pessoas que desenvolveram narcolepsia haviam sido vacinadas. "Isso
mostra que receber a vacina com fórmula diferente, sem os
adjuvantes em questão, poderia proteger quem tem predisposição
genética", acrescenta. Custo-benefício Ainda que tenham
surgido casos de narcolepsia em crianças vacinadas contra o H1N1,
os benefícios das vacinas contra gripe superam os riscos, de acordo
com todos os especialistas ouvidos pelo UOL. "É uma vacina bastante
segura, com taxas baixíssimas de eventos adversos", afirma o
infectologista pediátrico Milton Lapchik, chefe do Setor de
Controle de Infecções do Hospital Infantil Sabará. Ela é
contraindicada, no entanto, para quem sofre de alergia ao
ovo.
O Ministério da Saúde lança no dia 15 de abril a 15ª Campanha de
Vacinação contra a Gripe.
Neste ano, será usada uma vacina trivalente, com fragmentos de
três vírus diferentes: influenza A (H1N1), influenza A (H3N2) e
influenza B, conforme determinação da Organização Mundial da Saúde,
que avalia quais são os vírus mais presentes no hemisfério Sul para
indicar a fórmula que será usada por aqui. Os grupos
prioritários para a imunização serão crianças de seis meses a dois
anos, gestantes e mulheres que deram à luz há menos de 45 dias,
profissionais da saúde, indígenas, idosos, pessoas com doenças
crônicas, obesos e transplantados. "Mesmo com a Pandermrix, o
risco de a criança manifestar narcolepsia é baixo – de 1 para 50
mil. Então é uma questão de risco-benefício. Segundo a OMS, de 250
mil a 500 mil pessoas morrem de gripe todos os anos no mundo",
argumenta Emmanuel Mignot a favor da vacina contra a gripe.